Ou a Desconexão entre as Leis, O Sistema da Justiça em Mocambique e a suas Realidades Sócio-Antropológicas[1]. Subsídios para Discussão
Introdução
Em jeito de introdução é importante uma referência histórica[2] para uma melhor contextualização. Antes da chegada dos portugueses a esta zona do continente africano existiam unidades politicas dispersas com algum contacto com o Mundo[3]. A. Presenca portuguesa data de 1457 quando o navegador Vasco da Gama aportou nestas praias.
A chegada europeia a esta zona de África iniciou um processo político-militar, económico e sociocutural que teve como principais marcos a realização de 1884 a 1885 da Conferência de Berlim que literamente “retalhou” o continente africano ao sabor dos apetites imperialistas dos estados europeus. Das relacções e dinâmicas resultantes da chegada dos Portugueses a esta região à sua Ocupação Efectiva depois de 1885 num processo paulatino e bastante penoso Moçambique transformou-se num espaço teriorial, político e geográfico sob tutela de Portugal como estado dominador e mestre das pessoas, povos e recursos de Moçambique.
Tal processo em reacção, ou não, ao estímulo colonial lançou as bases de uma futura unidade sócio-antropológica comum ainda que se mantivessem as peculiaridades culturais. Mais adiante o Acto Colonial (1930)[4] estabeleceu as bases do relacionamento tranformou reforçando tal situação (Metrópole – Colónia).
Resultante do(s) processo(s) acima descritos durante cerca de 500 anos o espaço referenciado como Moçambique viveu debaixo de uma Pax e Lex Colonas que se consubstanciavam em quatro pilares principais a saber:
a.) Da Doutrinação: Representado pela Igreja Católica Apostólica Romana na sua acção de Evangelização que consubstanciava a acção civilizadora da unidade política colonial;
b.) Da Coerção: Representado pelos meios de domínio marcial, exército, polícia(s) colonial e corpos expedicionários locais;
c.) Da Administração: Representado pelos meios administrativos que zelavam pela manutenção de todo aparelho coercivo, dominante e económico colonial;
d.) Da Justiça: Representado pelo sistema jurídico e legal que garantia a administração da justiça colona, civilizadora, evangelizadora e dominante.
O longo período de convivência entre as duas unidades colona e colonizada criaram dois espaços socioantropológicos paralelos: O primeiro: composto pelo conglomerado dos povos originários das unidades politíco-administrativas pré-coloniais (autóctones, indígenas); o segundo: composto pelo conjunto de pessoas originárias do território colono que se assumiam donos e senhores do espaço dos primeiros (os Senhores). Pode-se também entender um terceiro grupo resultado das miscegenação daqueles dois grupos cujas dinâmica pendular o identifica, conforme as circunstancias, com o primeiro ou com o segundo.
A Ruptura
O quadro acima descrito terminou com a ruptura por via de um processo "libertário e de autodeterminação" a 25 de Junho de 1975 com a conquista da independência política[5] por parte do conjunto dos povos residentes no espaço referenciado como Moçambique. A ruptura inaugura uma nova fase, e dá início a uma unidade político administrativa diferente, um estado africano, soberano, uno e indivisível, concomitantemente uma nova unidade socio-antropologica e cultural, quem recusa e apologista do Holocausto cultural. Pelos momentos A (Penetração e Dominação Colonial) e B (Ruptura) ocorrem processos de diversa natureza que concorrem para a existência na sua mais ampla expressão de tal Estado africano, soberano, uno e indivisível.
Assim, afigura-se importante que acompanhando as transformações e processos políticos aconteçam processos paralelos de igual importância, por exemplo o ajustamento, e ou mesmo enquadramento da diversidade cultural do cidadãos do Estado nas suas leis, normas e regulamentos. Neste caso a Constituição, por exemplo deve retratar os percursos históricos, delinear as balizas e perspectivas utópicas e ou reais do povo que nele habita.
O(s) Problema(s)
O exposto anterior levanta, como problema as seguintes questões:
a.) Porque assenta a justiça do Estado africano, soberano, uno e indivisível em resquícios ou pressupostos filosóficos jurídicos do estado seu opressor?
b.) Estará o povo, como unidade socioantropológica, cultural e identitária, enquadrado no sistema de justiça que constitui a antítese da sua existência? Ou melhor se revê este povo em tal sistema?
Para a primeira questão importa, talvez, lembrar um slogan em voga no período pós-independência: "Escangalhar o Aparelho de Estado Colonial!”, não no aspecto administrativo, burocrático e processual do seu funcionamento, mas na eliminação de um dos seus mais importantes pilares: o Sistema de Justiça. Sobre a segunda questão é importante uma consulta, estudo e análise que permite a inclusão de elementos identitários comuns aos diferentes povos do novo Estado num sistema judicial que signifique a adopção dos aspectos positivos do Costume realizando, se se queira, um processo de indigenização do sistema de Justiça.
As discrepâncias entre as realidades culturais (O Costume[6]) positivas das múltiplas unidades políticas culturais, pré-coloniais que foram sendo transmitidas oralmente a nível dos grupos identitários, a desconexão entre as leis, o sistema da justiça em Mocambique e as realidades socio-antropológicas e das manifestações culturais afins, a continuidade da administração da justiça colona, pese embora o vínculo de subserviência tenha sido interrompido em 1975 tais factos, aliados a outras dificuldades conjunturais e estruturais resultantes ou não de tal separação com metrópole podem resultar numa desestruturação sociológica, económica e administrativa com as seguintes situações: Insipiência e iniquidade da administração da Justiça e erosão dos pilares do Estado em si.
As situações acima descritas levam a que de forma isolada, sem premeditação entenda-se, na extensão do território do Estado, as pessoas e ou grupos de pessoas, cansadas da incompreensão da administração da Justiça em si, resolvam chamar para si os fundamentos da justiça prática, didáctica e culturalmente aceitável, levando-nos a assistir, assim, os seguintes momentos críticos:
a.) Linchamentos. Na aplicação prática do sentido da Lei mais básica "Olho por Olho";
b.) Interferência: muito forte de elementos associados às tradições e hábitos culturais representativos dos povos e unidades identitárias anteriormente referidas como os curandeiros, Che'hes e afins
Chegado a este estágio o edifício da justiça comparar-se-á a uma, grande, árvore sem ramos que não dá sombra, nem protege os que nela procuram sombra, alento e descanso. Uma árvore culturalmente estéril mas cheia de parasitas. O cenário retrata o oposto do que se pretende com a justiça em Moçambique.
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[1] Ou resposta ao seminário “Os Desafios da Administração da Justiça em Moçambique” proferida pelo Dr. Filipe Sitói na Presidência da República a 19 de Setembro de 12.
[2] A Penetração Colonial. Momento A.
[3] Relações comerciais com os Árabes e alguma adesão ao Islão.
[4] O Acto Colonial foi uma lei constitucional que definiu as formas de relacionamento entre a metrópole e as colónias portuguesas. Foi aprovado em 1930, durante o período da Ditadura Nacional que antecedeu o Estado Novo, no governo de Domingos da Costa Oliveira, pelo Decreto n.º 18 570 de 8 de Julho de 1930, é republicado, sem o preâmbulo, quando da entrada em vigor da Constituição de 1933. A Lei nº 1900 de 21 de maio de 1935 alterou alguns dos seus artigos. Com este Acto, o conjunto dos territórios possuídos pelos portugueses passaram a denominar-se Império Colonial Português. O Acto Colonial restringiu e moderou a já limitada autonomia financeira e administrativa das colónias, reflectindo por isso o carácter centralizador e altamente colonialista do Estado Novo. Este Acto definiu durante muito tempo o conceito ultramarino português tendo sido revogado na revisão da Constituição de 1933 feita em 1951, que o modificou e integrou no texto da Constituição. In http://pt.wikipedia.org/wiki/Acto_Colonial.
[5] Independência & Autodeterminação: Momento B.
[6] “O Costume possui dois elementos para que se verifique:
- Corpus (Material): Repetição constante e uniforme de uma prática social. (uso).
- Animus (Psicológico): É a convicção de que prática social reiterada, constante e uniforme é necessária e obrigatória.
A obediência a uma conduta por parte de uma coletividade configura um uso. A reiteração desse uso forma o costume, que, na lição de Vicente Ráo, vem a ser a regra de conduta criada espontaneamente pela consciência comum do povo, que a observa por modo constante e uniforme, e sob a convicção de corresponder a uma necessidade jurídica. O emprego de uma determinada regra para regular determinada situação, desde que se repita reiteradamente, quando igual situação se apresente de novo, constitui uma prática, um uso, cuja generalização através do tempo leva a todos os espíritos a convicção de que se trata de uma regra de Direito. Esse hábito que adquirem os homens de empregar a mesma regra sempre que se repete a mesma situação, e de segui-la como legítima e obrigatória, é que constitui o costume.
Desta feita, para que um costume seja reconhecido como tal é preciso: a) que seja contínuo; fatos esporádicos, que se verificam vez por outra não são considerados costumes; b) que seja constante, vale dizer: a repetição dos fatos deve ser diuturna, sem dúvidas, sem alteração; c) que seja moral; quer dizer: o costume não pode contrariar a moral ou os bons hábitos, não pode ser imoral; d) que seja obrigatório, isto é, que não seja facultativo, sujeito a vontade das partes interessadas.
Os costumes são a maneira cultural de uma sociedade manifestar-se. A partir da repetição, constituem regras que, embora não escritas como as leis, tornam-se observáveis pela própria constituição de fato da vida social. O direito costumeiro é dividido de dois modos fundamentais:
- Quanto à natureza: que se subdivide em costume popular e costume erudito;
- Quanto ao conteúdo: podendo ser: a) "praeter legem"; b) "secundum legem"; e c) "contra legem".
Costumes não abrangidos pela lei, mas que completam o sistema legislativo(Praeter Legem), na falta de um dispositivo legal aplicável, o juiz deverá decidir de acordo com o Direito costumeiro(art. 4.º da lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”).
Costumes contemplados na lei (Secundum Legem); o preceito, não contido na norma, é reconhecido e admitido com eficácia obrigatória; Costumes opostos à lei (Contra legem), onde as normas costumeiras contrariam as normas de Direito escrito. Classicamente, o costume contra legem também pode ser denominado costume ab-rogatório, por estar implicitamente revogando disposições legais, ou desuetudo, por resultar na não aplicação da lei em virtude do desuso.
Embora, à primeira vista, os costumes não possam revogar leis, é certo que, por serem estas, produto da valoração social acerca de circunstâncias fáticas, e os costumes constituírem, na sua informalidade inicial, a própria dinâmica social, acabam apontando o anacronismo das leis escritas, as quais, muitas vezes, deixam de ser observadas, por perderem o sentido na nova situação social. Detecta-se o imenso descompasso que há entre os avanços sociais e a dinâmica legislativa. Hodiernamente, normas legais, inseridas em códigos ou leis extravagantes, são desconsideradas e inaplicadas, diante de uma interpretação realista do direito ou em vista de novos princípios jurídicos.
Nestas condições, pondera Ricardo Teixeira Brancato “algumas normas há em nossa sociedade que, embora não escritas, são obrigatórias. Tais normas são ditadas pelos usos e costumes e não pode deixar de ser cumpridas, muito embora não estejam gravadas numa lei escrita. Aliás, mais cedo ou mais tarde determinados costumes acabam por ser cristalizados em uma lei, passando, pois, a integrar a legislação do país.
É certo que o costume emprega três funções ao direito: a de inspirar o legislador a normatizar condutas, a de suprir as lacunas da lei e a servir de parâmetro para a interpretação da lei. Em suma, o costume apresenta três faces: como fonte da norma a ser legislada, como fonte suplementar da lei e como fonte de interpretação.
Daí ter acolhido nosso ordenamento jurídico, a possibilidade da sociedade criar o direito, pois, ao contrariar uma norma escrita, a vontade popular não só diz que essa norma não lhe serve como também inspira o legislador a elaborar outras normas. Fica demonstrada, então, a nítida importância do costume no legalismo jurídico, bem como o vital papel da sociedade em criar o direito. Nessa esteira, segue-se a posição de adotar o sistema diretivo diante das lacunas da lei, acolhendo primeiramente os costumes, e somente na ausência deste, serem acolhidos outras fontes suplementares do direito. Enquanto o costume é espontâneo e se expressa oralmente, a Lei demanda de um órgão do Estado (o Legislativo), através de um processo próprio de elaboração, e se expressa por fórmula escrita.” In http://pt.wikipedia.org/wiki/Costume
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