Farol do Macúti, Beira

Farol do Macúti, Beira

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Monday, April 4, 2011

Estou sem sono. São duas horas da madrugada, escuto música escrevo e de vez em quando jogo paciência. Estou sem sono. Grande novidade, a insónia é um dos meus grandes defeitos. Lá fora sopra e chove ocasionalmente. Brinco à polícia e ladrão com os mosquitos, apanho uns e outros apanham-me a mim.


Outros dormem, apenas eu e os músicos estamos acordados, dezenas deles, alguns já falecidos, mas hoje estão acordados e segredam-me os seus sucessos musicais. Babsy Mlageni, Steve Kekana, Mparanyana, Ladysmith & Black Mambazo, Osibisa, Ther Movers, Soul Brothers e muitos mais, mais recentes. Mas os antigos causam mais efeito. Às vezes fico com a impressão que o mecanismo da memória tem um interruptor: a música, que faz aparecer num ápice uma série de acontecimentos da vida das pessoas depositadas nos arquivos da memória. Quando escutamos certa música, os eventos passados despertam e lembramo-nos deles, algumas vezes reaparecem bastante nítidas, outras com partes mutiladas.

É surpreendente o que a música pode fazer com um tipo. Vêem-me à memória situações antigas, algumas desfilam como se tivessem acontecido na última tarde antes desta madrugada. Cenas passadas na minha infância, meus amigos, inimigos, com alguns dos quais ainda mantenho algum contacto. Outros, outros mesmo que quisesse. Porque, naturalmente (?) cada um seguiu o seu caminho, diferente do meu. Outros porque simplesmente (?) morreram, quem sabe talvez quando partir desta para outra.

Sinto saudades de todos eles. Dos bons, dos maus. Sinto saudades da minha infância, do meu quarto, da casa dos meus pais, do quintal, da minha rua, do meu bairro, da minha cidade. Do cheiro da comida às doze horas. Sentia o cheiro à comida e mesa posta desde a minha escola Colégio Nossa Senhora dos Anjos na Ponta-Gêa, onde brincava (estava no Infantil, por isso não estudava só brincava), até a casa dos meus pais na Fundação Salazar, no bairro do Macurungo, rua 19, casa 19 meu berço, meu panteão.

Nas memórias mais recuadas da minha infância estão associadas ao bairro da Ponta Gêa (provavelmente há-de ter sido a nossa primeira residência na cidade da Beira, nos anexos do Éneas de Sousa Oliveira, Rosa Cândida Vieira Rodrigues, sogros do pintor Eugénio Lemos, amigos de meu pai, depois fomos ao Macúti, para os anexos da casa do Rafael Nunes de Carvalho, marido da dona Isabel, jornalista do Notícias da Beira também amigo do meu pai).

Sucessivamente revejo imagens do imponente e grandioso Grande Hotel, o florido e animado Jardim Bacalhau, o Automóvel Touring Club da Beira, as curiosas esculturas e peças de arte espalhadas pelos seus jardins e em algumas moradias, as casas coloniais de madeira dos Caminhos de Ferro da Beira, a imponente Catedral Gótica da Paróquia da Nossa Senhora do Rosário na alameda que sai da baixa ao Colégio Nossa Senhora dos Anjos onde fiz o colégio, a Catedral, depois é uma avenida despida até à Praça da Índia, o enorme campo de golfe do Goto, o Hospital Europeu, o Pavilhão dos Desportos da Beira, a Mocidade Portuguesa, a Biblioteca Calouste Gulbenkian, ah a Livraria São Paulo em cujos corredores descobri e fiz amizade eterna com a Mafalda de Quino e com a banda desenhada... muitas, mas muitas coisas mais.

Das pessoas vêm-me à memória algumas imagens, muito difusas mesmo, devia ter por aí três, quatro anos, numas por exemplo estou às costas da minha mãe, na Praça da Índia, da praça para os lados era um mar de alcatrão. A praça era uma encruzilhada a três: num canto sem saída estava o Restaurante Veleiro, no sentido Norte - Sul a marginal que vinha do Grande Hotel para o farol do Macúti, sentido Oeste - Este a estrada que vinha da Muchatazina e desembocava na praça. Sim dizia que estava com a minha mãe, e de um dos lados, que não consigo precisar, da praia pelo Veleiro, da Ponta Gêa é que não era, por que estávamos de costas para ela e apanhávamos o sol pela frente, logo estávamos de frente para as zonas do Palmeiras e Macúti. Vinha uma turba agitada, armada com paus e calhaus, furiosa em nossa direcção.

Bem não me lembro mas há-de ter sido de algum lado. A minha mãe quando a viu, deve ter ficado muito assustada porque segurou na testa, como fazem os adultos quando têm um grande problema e não consegue resolver, ou quando recebem uma notícia má, morte essas coisas assim. Bem, não adianta esforçar-me, recordo-me da minha mãe que não conseguiu segurar os esfíncteres e a turba passou ululante por nós sem nos fazer mal, pelo menos não me recordo de mais nada. Nunca falei com ninguém acerca deste episódio, muito menos com a minha mãe. Hoje tenho fortes motivos para crer que se tratava de um grupo das pessoas envolvidas no conflito entre duas tribos ribeirinhas do imponente Zambeze nos anos 70.

A chuva lá fora continua a cair, e água traz-me outra memória. Uma vez a nossa casa (os anexos da casa da Ponta Gêa que eram uma espécie de cave) ficaram alagados, não sei como recordo-me apenas de ver o meu pai a por cima do corrimão das escadas a tentar passar de um lado delas para outro, passando por cima da água.

Aquelas são as recordações mais remotas da minha infância. As mais recentes, vivas e estruturadas estão ligadas ao Macurungo, à casa 19 na rua 19 da Fundação Salazar, onde vivi boa parte da minha vida, viajei pelo mundo e aprendi uma boa parte do que sei hoje.

1 comment:

Spiritwalker said...

Gostei do blog e espero poder falar consigo se possível, pois eu nasci na Beira e vivi no Macurungo até aós 6 anos, e de certa sforma Moçambique fez, faz e fará parte de mim! E tenho muitas recordações do Macurungo apesar de ter vindo embora (de férias :))!

Carlos Agostinho, Setúbal - Portugal